A arte no dia a dia
04 maio 2018
“É preciso ter balé de calçada.” Não sei se foi a primeira vez que ouvi, mas a primeira vez em que prestei atenção nessa expressão, estava em reunião de briefing com a Coca-Cola. Agência de um lado, cliente do outro. Em cima da mesa, produtos açucarados. Já era tarde e o atendimento da agência insistia num ponto de vista polêmico. O que cansava a todos. Afinal, briefing é a passagem de informação do cliente para a agência e, nesse tipo de reunião, a gente deve ouvir mais que falar. “É preciso ter balé de calçada.” enunciou o gerente de produto deles cortando o rapaz do atendimento. Parei. Naquele segundo, todas as minhas experiências pessoais, e profissionais, tudo que tinha vivido e estudado, o pouco que havia aprendido sobre comportamento humano, arte e cultura, fosse nas aulas ou matando aulas, nos livros lidos (bons e ruins), nas horas de meditação, nos conflitos e no fazer das pazes, até nos porres e nas típicas conversas amalucadas subsequentes, ou seja, minha compreensão de mundo parecia caber naquela frase de seis palavras. Me soou como um mantra quântico capaz de iluminar humanos – até mesmo recuperar aqueles que trabalharam anos em agências de propaganda. Explico.
O balé, que tem suas raízes nas cortes burguesas, na Europa do século XV, tornou-se com o tempo a arte suprema da dança. Se dançar é libertador, balé seria liberdade potencializada (organização, estética, conteúdo, emoções). Balé, pintura e escultura, ou qualquer plataforma de arte, potencializam o ser humano. Porém, balé, mais que qualquer outra forma de arte, requer sensibilidade, graça, técnica, dedicação, apreço pela estética, força de vontade, condicionamento físico e muita coragem. A verdade é que sem alguma coragem, ninguém vestiria a malha de balé, principalmente os bailarinos. Mas e o Balé de Calçada? A rua, a avenida, a praça e o parque, assim como a calçada e todo lugar público, sinalizam a vida em movimento, o suor no rosto, o ir e vir do trabalho, o encontro, a democracia, a rotina de verdade, urbana e, muitas vezes, fria, até bem dura. Pois que Balé de Calçada me pareceu naquela noite o encontro dessas duas polaridades; duas pontas do ser humano que se tocavam com a ajuda de seis palavras. Balé é o sonho, calçada é a realidade. E apesar do episódio ter acontecido na Praia de Botafogo, 13o andar, de cara pro berço do Rio, ele tem muito a ver com a cidade onde resido hoje.
Em Orlando, onde moram brasileiros de todos os cantos do Brasil, o sonho também encontra e toca a realidade todos os dias. O sonho que cada um de nós traz quando chega na América, aquele que alimentamos e nos alimenta a cada dia. Como também os muitos parques e atrações que fazem parte da paisagem que testemunha a ida dos filhos para a escola, o trânsito profissional de cada um e as idas no final do dia ao Publix. Aquela expressão, Balé de Calçada, chegava pra mim como a síntese do viver em sociedade, do viver com o outro, para o outro e, às vezes, infelizmente, apesar do outro. Não tem nada a ver com malandragem ou gaiatice. Tem a ver com inteligência emocional e realização de potencialidades pessoais e coletivas. Tem a ver com colaborar, em vez de dificultar. Com ajudar, nunca a ver com desajudar. Passados 15 ou mais anos da tal reunião, vejo cada vez mais pessoas buscando aplicar os princípios da arte na vida, aplicar o balé na própria calçada a cada dia. Pessoas mais espontâneas e conciliadoras. Mais esforçadas e generosas. Agindo mais por princípio que por interesse. Todos mais criativos, intuitivos e corajosos. Dá gosto ver.
Aproveitando a deixa, vai ter Contemporary Wonders com Live Music em May 4-6 2018, no Dr. Phillips Center for the Performing Arts, com Orlando Ballet Premiere da coreógrafa Jessica Lang, e Alice in Wonderland, com coreografia de Arcadian Broad, além de todo o poder do amor em Love Is do Diretor Artístico Robert Hill, com a vocalista Sisaundra Lewis. A quem for assistir, um ótimo balé. A todos, um ótimo Balé de Calçada.
Cheers!
Carlos Eduardo Faria Costa